sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Islamofilia




Todos que assistiram conferências sob minha titularidade sabem da prática que adoto de discutir imagens e peças alegóricas. O procedimento é uma constante nas minhas conferências desde os anos 1990. Afinal, como ponderou o antropólogo Edward Hall, os humanos são uma espécie que sobremaneira é propensa a valorizar a informação visual.

Certo dia, quando estava discorrendo sobre a projeção geopolítica dos Estados Unidos, fiz uso da magnífica peça alegórica de autoria do pintor estadunidense Dennis Malone Carter (1827-1881), um trabalho datado de 1878 e cuja temática alude a uma pouco comentada investida dos fuzileiros navais norte-americanos no litoral da atual Líbia no início do século XIX, conforme imagem reproduzida como segue:




Prontamente então, um dos presentes à palestra não só rotulou a pintura como islamofóbica como igualmente iniciou uma apaixonada catilinária relativa ao hegemonismo ocidental, ao histórico de agressões ao povos do Terceiro Mundo, sobre a arrogância imperialista, o racismo e como seria previsível, dissertou longamente a respeito da cultura de ódio cultivada pelos círculos militaristas norte-americanos.

Tratava-se evidentemente de um membro do seleto conclave dos “caros amigos”, que numa fração de segundo se investiu do papel de um expoente inflamado a denunciar um longo prontuário de sevícias promovidas pelo imperialismo.

Bem, para começo de conversa, creio que primeiramente as pessoas deveriam se informar antes de serem tão incisivas nos seus julgamentos.

Deste modo cabe preliminarmente registrar que uma rápida busca no Google com o termo islamofobia rapidamente nos presenteia com 1.180.000 resultados (certificação realizada na manhã do dia 26 de Setembro de 2016).

Todavia, caso os curiosos busquem pela palavra que seria antônimo de islamofobia - isto é, islamofilia - o Google insiste na busca por islamofobia, apresentando as mesmas 1.180.000 entradas. Mas alternativamente oferece uma segunda opção: “ao invés disso, pesquisar sobre islamofilia”. 

É aí que tomamos conhecimento do miserável espólio de 7.550 citações a respeito de islamofilia, basicamente em castelhano, italiano e em polonês. 

Note-se que nenhuma das entradas direcionava para uma peça textual mais elaborada em português. O que está disponível na Internet são apenas dois ou três artigos na nossa língua, por sinal pouco esclarecedores sobre este tema. 

Este resultado pode até parecer estranho, mas não é. 

Pelo contrário, ao se tornar uma terminologia icônica do vocabulário crítico, engajado e supostamente contestador, o largo trânsito do termo islamofobia revela que antes de se pretender defender o Islam, o que está realmente em jogo é o ataque e a desconstrução do mundo ocidental.

Claro está que a islamofobia é incompatível com uma perspectiva inclusiva da Modernidade. Não só por atentar contra uma vasta comunidade de humanos mas igualmente por desqualificar o legado de uma civilização que não obstante ter perdido seu ímpeto inovador, não pode ser simplesmente borrada por sentimentos racistas e preconceituosos.

Anote-se que a civilização islâmica desenvolveu engenhosas máquinas hidráulicas, artesanato refinado, tratados de farmacopéia e medicina, inventários de biologia e botânica, compêndios de química, manuais de metalurgia, métodos de irrigação e drenagem, obras arquitetônicas, artes náuticas, levantamentos cartográficos, tratados de história, de astronomia e enormes avanços na matemática e na álgebra.

O domínio conquistado no plano do debate intelectual, obtendo inclusive grande reconhecimento junto à Europa medieval, foi incontestável. Uma prova do que estou colocando é registrado pelo geógrafo francês Roland Breton, um famoso especialista em geografia das civilizações.

Breton, ponderando sobre o acervo das bibliotecas do mundo muçulmano no período do seu apogeu, sem maiores delongas observa que no século IX o Califa de Bagdá fundou a Casa da Sabedoria, uma biblioteca que reunia um milhão de volumes; no século X, o maioral de Córdoba reuniu um acervo de 400.000 tomos para consulta pública e o Califa do Cairo, 1,6 milhões, dos quais 6.000 eram títulos de matemática e 18.000 de filosofia.

Mas, confira-se que no mesmo período, Carlos V, o Sábio, rei da França, tido como patrono das artes e fundador da primeira biblioteca real francesa, cantado em prosa e verso nas crônicas ocidentais, a muito custo conseguiu reunir 900 livros na sua corte. Ainda assim um pecúlio que praticamente constituía um regalo do mandatário, vedado ao comum dos mortais.

Portanto, se torna imperioso aconselhar mais cuidado aos islamofóbicos de plantão quando estes abrem sua grande boca. Por outro lado, o mesmo deve ser recomendado aos islamofílicos, especialmente nas suas vertentes ideológicas, envenenadas por um ódio incontrolável a tudo que seja referente ao Ocidente.

Neste sentido, analisemos, pois a polêmica imagem que induz surtos de sentimentos antiocidentais.

Retenha-se que a pintura de Dennis Malone Carter retrata um episódio raramente citado nos livros de história. A imagem tematiza a primeira grande incursão norte-americana no espaço mundial, que ocorre poucos anos após a independência, nos primórdios do Século XIX, nas longínquas praias do Norte da África, episódio que passou a ser conhecido como Guerras Berberes [1].

Isto acontece nos anos 1801-1815, quando os Estados Unidos, após uma sucessão de incidentes envolvendo escravização de marinheiros dos EUA e aprisionamento ilegal de navios sob sua bandeira por piratas líbios e argelinos - transgressões praticadas com o objetivo de obter resgate - declaram guerra aos corsários de Trípoli, cidade situada na atual Líbia.

Assim, os EUA, na ocasião uma nação praticamente recém independente, não só não se curvaram às exigências dos regentes de Trípoli, como passaram às vias de fato.

Numa ação ousada, esquadrões navais dos EUA fortemente armados, em obediência às ordens diretas de Thomas Jefferson (1743-1826), terceiro presidente dos Estados Unidos, foram despachados para Trípoli.

Os norte-americanos escolheram a dedo os soldados e marinheiros que participariam nesta perigosa expedição punitiva. Amarelões, covardes, capitulacionistas e fracos foram descartados.

Apenas os destemidos e os que haviam dado provas de notória coragem e determinação nos combates durante a guerra pela independência contra os britânicos integraram o corpo da missão.

Sem aviso prévio, a armada cruzou todo o Atlântico, entrando sorrateiramente no Mar Mediterrâneo, bem nas barbas do território pirata. 

Chegando a Trípoli, a marinha dos EUA encetou um bombardeio devastador da cidade, enquanto que com a cobertura do fogo naval, os fuzileiros navais destruíam os navios inimigos nas docas e ocupavam as fortalezas da cidade, esmagando sem piedade a resistência desesperada dos corsários.

É o que transparece na pintura de Malone. O assalto dos fuzileiros navais dos EUA às instalações dos corsários em Trípoli, na Líbia, aos três de Agosto de 1804, foi coroado de sucesso.

Na imagem, o personagem em primeiro plano em combate mortal com um pirata é o tenente Stephen Decatur Jr. (1779-1820), herói militar da marinha norte-americana. Nesta época não haviam drones nem bazucas. Era quase tudo no mano a mano.

O texto imagético igualmente reproduz a fúria dos combates, que aparte o gosto nacionalista da pintura, é condizente com um confronto sangrento e mortal.

Foi assim que os piratas berberes, que simplesmente se julgavam a salvo de qualquer castigo, pagaram caríssimo pela ousadia em ameaçar a paz nos oceanos. Aliás, uma lição merecida para uma ralé responsável por toda sorte de atrocidades, malfeitos e patifarias. 

No frigir do conflito, ações punitivas de rescaldo nesta mesma região, contra o Paxá de Argel, deixaram novamente claro que os Estados Unidos não estavam dispostos a tolerar qualquer ameaça à navegação e ao comércio.

Diante da furiosa incursão norte-americana, os líderes locais foram forçados a recuar e concertar acordo com os EUA, um êxito que na época, fez a opinião pública mundial perder a respiração.

Claro está que apenas a precipitação pode entender a obra de Malone como uma peça imagética islamofóbica. Ora, isto é simplesmente ridículo. Tratava-se sinteticamente de limpar a orla do Mediterrâneo de uma malta de bandidos e de uma súcia de saqueadores.

Todavia, restaria aos incautos detectar na bandeira vermelha com a meia lua e a estrela um indicativo dos sentimentos preconceituosos de Dennis Malone contra o Islam e a pregação muçulmana.

Mas não é nada disto. A bandeira reproduzida na imagem é da Turquia, nação majoritariamente maometana que na época, detinha soberania formal sobre o litoral do Norte da África.

Entretanto, cabe mais um recado aos caros amigos: a bandeira da Turquia, a despeito de apresentar uma simbologia identificada pelos ocidentais como muçulmana, não é islâmica.

A meia lua e a estrela é um símbolo muito difuso nas culturas da Ásia Central, região de onde migraram os otomanos para fundar o Império Turco, extinto no início do século passado. 

Nesta linha de argumentação, sendo um símbolo identitário não-religioso, a simbologia da velha bandeira permaneceu como pendão nacional da novel República da Turquia.

Portanto, é neste caso um emblema com conotações étnicas e nacionais, confirmado pelo imaginário dos povos estepários da Ásia Central, e não pela mensagem do profeta Maomé.

Daí que a islamofobia, caso busque por maior soldadura conceitual, deve se nutrir de estudo e reflexão. 

Isto sob a pena de ser transformada no que infelizmente tem se revelado: um discurso muitas vezes marcado por inconsistências, nada afeito às contradições do processo histórico e de fato pouco empenhado em reconhecer as realizações da majestosa civilização que em tese, estaria engajado em defender.

Nesta perspectiva, em muitos casos a argumentação anti-islamofóbica se torna simplesmente numa semântica vazia, raivosa, caricatural e intempestiva, carente de subsídios históricos, culturais e até mesmo factuais.

Deste modo, passa a corporificar uma narrativa enviesada, a desvelar uma islamofilia ideologizada e inconsequente: a Islamofilia dos idiotas.


Esta e outras notas histórico-culturais estão comentadas e indexadas à obra GUERRA REVOLUCIONÁRIA AMERICANA (Maurício Waldman, Editora Kotev, Julho de 2016).




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MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor, consultor ambiental e professor universitário. Autor de 16 livros e de mais de 600 artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria, Waldman é graduado em Sociologia (USP (1982), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).

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[1] A orla litorânea norte-ocidental da África do Norte foi, desde a antiguidade clássica, tradicionalmente reconhecida no imaginário geográfico ocidental como Berbéria.















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