sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Haiti


Reza a boa antropologia, os símbolos constituem um manancial de significados, que além de expressarem idéias e sentimentos, modelam e ofertam sentido às relações que mantemos com o mundo real.

Neste sentido, os símbolos transmitem mensagens, expectativas e noções, captadas, entendidas e amplificadas pelo público iniciado nos seus segredos.

Assim, mesmo quando mascaradas, travestidas ou introjetadas em outros contextos, as simbologias mantém a vivacidade e a determinação dos conceitos e das concepções.

Este seria o caso da bandeira do Haiti, expressão máxima da grandiosa Revolução Haitiana (1791-1804), a maior insurgência bem sucedida de escravos da história mundial.

Esta luta foi a única que desafiou com sucesso três grandes potências ocidentais: França (a potência colonizadora), a Espanha e o Reino Unido.

Dura, longa e violenta, a luta contra o colonialismo francês estendeu-se até o ano de 1803, quando os haitianos, sob comando de Jean-Jacques Dessalines, assombraram o mundo ao impor  na famosa Batalha de Vertières, uma impressionante derrota ao bem armado corpo expedicionário que fora despachado por Napoleão ao Haiti para sufocar a rebelião negra.

Nada semelhante a isto acontecera na história mundial. Seria como registrar uma derrocada da República Romana diante do exército de Espartacus ou a capitulação do esquema latifundista diante das milícias quilombolas.

Os haitianos estavam empolgados por um intenso e irrefreável fervor antiescravista, anticolonial e antifrancês, temperado com notas candentes da filosofia iluminista.

Mas de igual modo, os revoltosos eram embalados pelas vozes das entidades com as quais se comunicavam através dos rituais da religião Vodu, trazidas da África e com enorme prestígio nas terras da América.

Isto posto, atando o que ponderamos no início deste post com a bandeira haitiana, voltemos nossa atenção para alguns fatos bastante reveladores a respeito do pendão nacional deste país caribenho.

A imagem que acompanha este texto reproduz o brasão de armas da República do Haiti, ao que tudo indica oficializado em 1807, poucos anos após a confirmação da independência (1804). 

Como é possível observar, este emblema nacional mostra seis bandeiras do país - três de cada lado - postadas a partir da palmeira situada ao centro da imagem e dois canhões, seis baionetas e dois machados, também lado a lado.

No gramado são encontradas duas cornetas, duas âncoras e bem próxima de um tambor, uma corrente partida. Encimando a palmeira, está um barrete frígio, símbolo identificado com as lutas iluministas e republicanas.

A imagem traz uma mensagem expressa na fita, o conhecido bordão L'Union Fait La Force (“A União Faz a Força”, em francês), uma divisa inspirada em Esopo que tornou-se patrimônio de muitos movimentos libertadores.

Atente-se que este brasão de armas figura exatamente no centro da bandeira nacional do Haiti. 

A primeira vista, trata-se formalmente de uma bandeira oficial, símbolo máximo de um Estado independente. É o que o sentido  visual imediato comunica aos não iniciados.

Todavia, é interessante notar que embora a simbologia seja em princípio europeia - tambores, flâmulas, baionetas, canhões, fuzis, etc. - o texto visual está calcado na vivência nacionalista local, que paralelamente à interpretações de cunho mais institucional, permitem de igual modo uma vinculação com a religião vodu e com o acervo cultural haitiano.

Isto é bastante claro na palmeira, eixo da imagem e representação simbólica da independência, um claro elemento da flora local, por sinal sustentando o barrete frígio, o que já sinaliza para uma reinterpretação imagética com base na experiência haitiana. 

A corrente partida, neste senso, é uma clara indicação de que este corpo de ideias vinculou-se, no Haiti, à extirpação total e absoluta da escravatura, item da pauta independentista latino-americana que no final das contas, somente foi levada até suas últimas consequências pelos revolucionários haitianos. 

O tambor, instrumento sonoro que na cota de armas aparece na versão europeia, pode por outro lado ser uma evocação codificada dos tambores do Vodu, religião intrinsecamente vinculada à rebelião dos escravos negros.

Aliás, o vermelho e o azul, institucionalmente codificados como representação dos escravos e dos mulatos - atores por excelência da luta anticolonial - são no Vodu haitiano as cores de Ougou ou Ogun, Orixá da guerra.

De acordo com as narrativas da religião Vodu - assim como para o Vodum da tradição Ewe-Fon, para o Candomblé brasileiro, para o Vudu da Louisiana e para a Santeria de Cuba - Ogun controla e está no comando de imensos poderes. 

Altamente respeitado e temido, Ogun ensinou a Humanidade como conquistar e como dominar o medo, o fogo e as armas. É por isso que algumas pessoas se referem a ele como um Espírito ferreiro ou o Deus de Ferro, metal com o qual as armas são feitas. 

Neste sentido, Ogun torna-se herói do povo haitiano, espírito de coragem, expressão da autodeterminação nacional.

Além disso, a cor verde na iconografia Vodu possui vários significados: abundância, fertilidade, riqueza. Mas também implica em renascimento. Isto é: independência. 

O amarelo está relacionado ao sucesso: justamente a cor da palmeira, dos canhões e dos mastros. Ou seja: vitória contra os franceses com base na identidade e na força das armas.

Quanto ao bordão, a mensagem confirma que se tratou de uma rebelião generalizada formando um só corpo de insurgentes, onde a força, no caso, voltou-se contra o poder colonial estrangeiro e a elite latifundiária francesa.

Expressão da identidade haitiana, a bandeira desta república negra (que por sinal pagou um preço altíssimo por sua ousadia, sendo hostilizada sem tréguas pelo chamado "mundo civilizado"), demonstra, portanto o quanto os símbolos mais profundos e amados podem estar presentes e atuantes, veiculando sentidos que em princípio, seriam somente um prosaico lugar comum.

Esta é a predisposição demonstrada pela bandeira haitiana. Mas também uma volição de todos as sociedades e culturas humanas. 

Uma clara demonstração do quanto os símbolos mais profundos animam a alma de povos, grupos e nações.



Esta e outras notas histórico-culturais estão comentadas e indexadas à obra AMÉRICA LATINA: A INDEPENDÊNCIA INACABADA (Maurício Waldman, Editora Kotev, 2016). 





SAIBA MAIS:

Portal da Livraria Cultura (São Paulo, Brasil):
http://www.livrariacultura.com.br/p/america-latina-104326843

Plataforma Internacional Kobo (Ottawa, Canada):
https://store.kobobooks.com/en-us/ebook/america-latina-1

MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor, consultor ambiental e professor universitário. Autor de 16 livros e de mais de 600 artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria, Waldman é graduado em Sociologia (USP (1982), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).


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