Reza a boa antropologia, os símbolos constituem um manancial de significados, que além de expressarem idéias e sentimentos, modelam e ofertam sentido às relações que mantemos com o mundo real.
Neste sentido, os símbolos transmitem
mensagens, expectativas e noções, captadas, entendidas e amplificadas pelo
público iniciado nos seus segredos.
Assim, mesmo quando mascaradas,
travestidas ou introjetadas em outros contextos, as simbologias mantém a
vivacidade e a determinação dos conceitos e das concepções.
Este seria o caso da bandeira do Haiti,
expressão máxima da grandiosa Revolução Haitiana (1791-1804), a maior
insurgência bem sucedida de escravos da história mundial.
Esta luta foi a única que
desafiou com sucesso três grandes potências ocidentais: França (a potência colonizadora), a Espanha e o Reino Unido.
Dura, longa e
violenta, a luta contra o colonialismo francês estendeu-se até o ano de 1803,
quando os haitianos, sob comando de Jean-Jacques Dessalines, assombraram o
mundo ao impor na famosa Batalha de Vertières, uma impressionante derrota ao bem armado corpo expedicionário
que fora despachado por Napoleão ao Haiti para sufocar a rebelião negra.
Nada semelhante a isto acontecera na
história mundial. Seria como registrar uma derrocada da República Romana diante
do exército de Espartacus ou a capitulação do esquema latifundista diante das milícias
quilombolas.
Os haitianos estavam empolgados por um
intenso e irrefreável fervor antiescravista, anticolonial e antifrancês,
temperado com notas candentes da filosofia iluminista.
Mas de igual modo, os revoltosos eram
embalados pelas vozes das entidades com as quais se comunicavam através dos
rituais da religião Vodu, trazidas da África e com enorme prestígio nas terras
da América.
Isto posto, atando o que ponderamos no
início deste post com a bandeira haitiana, voltemos nossa atenção para alguns
fatos bastante reveladores a respeito do pendão nacional deste país caribenho.
A imagem que acompanha este texto reproduz
o brasão de armas da República do Haiti, ao que tudo indica oficializado em
1807, poucos anos após a confirmação da independência (1804).
Como é possível observar, este emblema
nacional mostra seis bandeiras do país - três de cada lado - postadas a partir
da palmeira situada ao centro da imagem e dois canhões, seis baionetas e dois
machados, também lado a lado.
No gramado são encontradas duas cornetas, duas âncoras e bem próxima de um tambor, uma corrente partida. Encimando a palmeira,
está um barrete frígio, símbolo identificado com as lutas iluministas e
republicanas.
A imagem traz uma mensagem expressa na
fita, o conhecido bordão L'Union Fait La Force (“A União Faz a Força”,
em francês), uma divisa inspirada em Esopo que tornou-se patrimônio de muitos movimentos libertadores.
Atente-se que este brasão de armas figura exatamente no centro da bandeira nacional do Haiti.
Atente-se que este brasão de armas figura exatamente no centro da bandeira nacional do Haiti.
A primeira vista, trata-se formalmente
de uma bandeira oficial, símbolo máximo de um Estado independente. É o que o
sentido visual imediato comunica aos não iniciados.
Todavia, é interessante notar que
embora a simbologia seja em princípio europeia - tambores, flâmulas, baionetas, canhões, fuzis, etc.
- o texto visual está calcado na vivência nacionalista local, que paralelamente à
interpretações de cunho mais institucional, permitem de igual modo uma
vinculação com a religião vodu e com o acervo cultural haitiano.
Isto é bastante claro na palmeira, eixo
da imagem e representação simbólica da independência, um claro elemento da flora
local, por sinal sustentando o barrete frígio, o que já sinaliza para uma
reinterpretação imagética com base na experiência haitiana.
A corrente partida, neste senso, é uma
clara indicação de que este corpo de ideias vinculou-se, no Haiti, à extirpação total e absoluta da escravatura, item da pauta independentista latino-americana que no final das
contas, somente foi levada até suas últimas consequências pelos revolucionários haitianos.
O tambor, instrumento sonoro que na
cota de armas aparece na versão europeia, pode por outro lado ser uma evocação
codificada dos tambores do Vodu, religião intrinsecamente vinculada à rebelião
dos escravos negros.
Aliás, o vermelho e o azul,
institucionalmente codificados como representação dos escravos e dos mulatos - atores por excelência da luta anticolonial - são no Vodu haitiano as cores de Ougou ou
Ogun, Orixá da guerra.
De acordo com as narrativas da religião
Vodu - assim como para o Vodum da tradição Ewe-Fon, para o Candomblé
brasileiro, para o Vudu da Louisiana e para a Santeria de Cuba - Ogun controla
e está no comando de imensos poderes.
Altamente respeitado e temido, Ogun ensinou a Humanidade como conquistar e como dominar o medo, o fogo e as armas. É por isso que algumas pessoas se referem a ele como um Espírito ferreiro ou o Deus de Ferro, metal com o qual as armas são feitas.
Neste sentido, Ogun torna-se herói do povo haitiano, espírito de coragem, expressão da autodeterminação nacional.
Altamente respeitado e temido, Ogun ensinou a Humanidade como conquistar e como dominar o medo, o fogo e as armas. É por isso que algumas pessoas se referem a ele como um Espírito ferreiro ou o Deus de Ferro, metal com o qual as armas são feitas.
Neste sentido, Ogun torna-se herói do povo haitiano, espírito de coragem, expressão da autodeterminação nacional.
Além disso, a cor verde na iconografia
Vodu possui vários significados: abundância, fertilidade, riqueza. Mas também
implica em renascimento. Isto é: independência.
O amarelo está relacionado ao sucesso: justamente a cor da palmeira, dos canhões e dos mastros. Ou seja: vitória contra os franceses com base na identidade e na força das armas.
O amarelo está relacionado ao sucesso: justamente a cor da palmeira, dos canhões e dos mastros. Ou seja: vitória contra os franceses com base na identidade e na força das armas.
Quanto ao bordão, a mensagem confirma
que se tratou de uma rebelião generalizada formando um só corpo de insurgentes,
onde a força, no caso, voltou-se contra o poder colonial estrangeiro e a elite
latifundiária francesa.
Expressão da
identidade haitiana, a bandeira desta república negra (que por sinal pagou um preço altíssimo por sua ousadia, sendo hostilizada sem tréguas pelo chamado "mundo civilizado"), demonstra, portanto o quanto
os símbolos mais profundos e amados podem estar presentes e atuantes,
veiculando sentidos que em princípio, seriam somente um prosaico lugar comum.
Esta é a predisposição demonstrada pela bandeira haitiana. Mas também uma volição de todos as sociedades e culturas humanas.
Uma clara demonstração do quanto os símbolos mais profundos animam a alma de povos, grupos e nações.
Uma clara demonstração do quanto os símbolos mais profundos animam a alma de povos, grupos e nações.
Esta e outras notas
histórico-culturais estão comentadas e indexadas à obra AMÉRICA LATINA: A
INDEPENDÊNCIA INACABADA (Maurício Waldman, Editora Kotev, 2016).
SAIBA MAIS:
Portal da Livraria Cultura (São Paulo, Brasil):
http://www.livrariacultura.com.br/p/america-latina-104326843
Plataforma Internacional Kobo (Ottawa, Canada):
https://store.kobobooks.com/en-us/ebook/america-latina-1
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Librerie La Feltrinelli (Milano, Italia):
http://www.lafeltrinelli.it/ebook/mauricio-waldman/america-latina/1230001316001
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MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor,
consultor ambiental e professor universitário. Autor de 16 livros e de mais de 600
artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria, Waldman é graduado em
Sociologia (USP (1982), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia
(USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações
Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).
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